Se se escreve com o corpo

Thays Pretti
Maria do Ingá
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3 min readSep 1, 2020

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Thays Pretti

Senti saudades de escrever crônicas.

Foi uma coisa que me surgiu na memória numa tarde morna — como um deslize, uma recaída de um vício ruim. Ingênua do que me movia, peguei um café e me encostei na janela. E vi! Vi as pessoas correndo pela ciclovia, um risco vermelho cortando a avenida de ponta a ponta. Vi o cachorro correndo à frente do dono, eu vi. A fúria nascente da criança aos prantos no vai-não-vai de um carrinho de bebê. Vi o verde seco rodeando os carros em sua pressa assíncrona, vi o azul, a nuvem, o pássaro, e senti a boca salivar. Era saudade. Saudade sempre tem um pouco de saliva.

Há tempos eu não escrevia uma crônica. Minha derradeira delas foi publicada em abril de 2019, antes que eu a soubesse derradeira. Um dos pressupostos de se estar vivo é não saber quando se vai morrer. Em um momento você está ali, no outro, já não. Pra mim, foi assim quando o jornal acabou. A palavra interrompida na garganta. A voz em inesperado luto, a viuvez precoce de um relacionamento que já vinha hábito. Daquele tipo cujos gestos você crê adivinhar, apenas para se surpreender ao ver que nunca se adivinha nada que não se aprenda pelos poros.

Minha derradeira crônica também nasceu pouco menos de um ano antes de o mundo se fechar igual planta dormideira, irremediável concha. Foi há quantos séculos? Se eu soubesse que contagem regressiva já estava em curso ali, que teria feito eu dos meus dias de sol? Esfreguei o rosto com vontade de apagar a fome que me subia pelo ventre, desfazer o quente nó do desejo, que é ébrio e rubro e tem a força de uma mãe.

Num arrepio, percebi a parede na pele do braço, o piso frio sob as minhas solas, e descobri tudo o que não era meu olho pairando em frente à minha visão, desnudo, disponível — árvore, vento, muro, flor. Mordi meu lábio ao ver a carne do dia exposta e fremente, crispei os dentes na expectativa do bote. E num sussurro úmido, num esgar rasgado e ávido, a primeira palavra brotou como uma bolha vindo do fundo e plóp — explodindo humílima na superfície da água. Senti.

E essa primeira palavra me soou como um sempre-aqui, era já-presente desde os tempos imemoriais. O tato acostumado com a pele da palavra, seu movimento bailando familiar pela língua. A palavra que é minha única e verdadeira guia, a chama, a água, a terra, o ar. Palavra mística lançada ao sol, palavra-flecha, um grito, uma potência. A palavra me move, e eu inexisto sem ela — só a palavra É. Me rasgo inteira e do nu de estar apalavrada por um segundo, como se por entre a fresta de uma cortina, olho o mundo. E o mundo — enfim! — novamente deita seu corpo sobre mim.

É a partir daí que escrevo, e a palavra se faz matéria. Saio da janela para o papel, para o traço e a letra.

Absorta.

Satisfeita.

Fecundada.

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